da primeira vez em que te vi
(ou quando o sol bateu
em seus óculos
e te revelou)

o vento mudou a rotação
de seu cabelo
cobrindo seu rosto

uma coisa física
sem mistério algum
– achei bonito

Ainda não era meio dia:

você desenhou meu rosto

com a ponta do dedo
enquanto o sol girava
fora do quarto

Autobiográficas (acho que é  nº V)

eu tenho

muita

resistência

a dor

por sua abundância

não por sua falta

faço procedimentos

ortodônticos

sem anestésico

tenho cólicas que

me colocariam no

tramau

não fosse o:

– você aguenta?

sei inclusive

combinações de

remédios

que aliviam muitas

dores

mais pela abundância em tê-las

menos por sua escassez

meu útero tem o

tamanho de dois punhos

ele é pugilista

e me soca por dentro

durante uma semana

mensalmente

tenho outras dores seculares,

sutis:

– você trabalha aqui?

que doem

mais por sua abundância

menos por sua escassez

assim como a

esperança

para-língua

I
minha vó enrola
com a pontas dos dedos
os miolos de pão
debulha o tempo
fermenta na língua
um idioma de trigo


II
a janela
ao contrário
das portas
é um idioma
de entradas

III
apenas através do tédio
é possível acessar
a língua dos poetas


IV
sonho é a linguagem
universal do delírio:
eu tenho que poesia
é o delírio da língua

ela já casada,

senhora da casa

me achava miudinha

com os braços curtos demais

até hoje faz troça

-Iracema (que é minha mãe, sua filha)

leva essa menina no médico,

que magrelinha!

hoje olho ela de cima

e peço a bença

-bença Vó

a Vó Lídia dá risada e diz:

-como tá bonita a minha meninha!

minha primeira bicicleta
meu avô quem me deu,
12 vezes no carnê,
sem juros

caloi cross branca,
peças florescentes verdes

guidão reto

fiz inveja a todos
moleques da rua.
meu avô
nunca ligou pra menina -moleque
que era

canivete na barriga,
dois dias depois,
na primeira volta,
um ladrão tomou

perda menor para a menina-moleque
que eu era escondida

(menos pro meu avô)

que eu ainda sou,
Eu sou!

Frame

Em nove de outubro de 1970

Torquato escreveu em seu diário de internação:

“a vida é um processo linear que ao mesmo tempo em que vai, está voltando”

Neste mesmo dia em 1999

enquanto velhas carolas revezavam um terço

para o dia de meu nome

eu fazia 15 anos

Minha mãe em nove de outubro de 1970

tinha 12 anos

talvez não conhecesse meu pai ainda

que morava duas ruas depois de sua casa

Em 1984 quando nasci

minha mãe tinha 26 anos

Meus avós, que também nasceram no Piauí,

já estavam em São Paulo

e tinham quatro filhos:

minha mãe era a caçula, também sou

Nasci na rua General Pereira de Berredo

no Jardim Camargo Novo

fora do ambiente hospitalar

apressada

aos quinze anos eu ainda não conhecia Torquato

e ele já não estava mais aqui.

as coisas sem nome

1.

tomar café

no país dos poetas

palmilhar

suas ruas

no ritmo de Adrienne

2.

desfeita 

a cama como guarda

roupas

naquele espaço

onde não

cabíamos nós

dormimos

hoje jaz

não mais

3. 

parece que ninguém voltou

4.

 precipício

é

sempre o 

caminho

mais fácil

5. 

eu como também

6.

quanto tempo se demora

para dicionarizar uma

palavra que ainda não

inventei?

7. 

sorte

8. 

azul

9. 

há muitas maneiras de se dizer as coisas

10.

a poesia continua sendo

a melhor maneira de dizer todas

11.

12.

ouvir é uma escolha.

É tarde já,
mas quem insone acredita em relógios?

as pedras jazem quietas e atrasadas em diferentes lugares que ainda não chegamos.

nos aguardam também
as plantas que ainda não sei o nome
jamais saberei todos

dois corpos celestes com
trajetórias distintas
cintilam por uma mesma
Órbita
livres

das coisas mais delicadas:

Como naquele dia

em que matei um filhote
de lagartixa

Hidrelétricas

inundar nossos corpos

preenchendo cada dobra como água:

gerar energia como um rio

desviado de seu curso,

cachoeira:

amar uma mulher